2002

Toumaï e a evolução

Beto Vianna - Jornal O Tempo, 06/08/02

 

Batizado cientificamente de Sahelanthropus tchadensis (Brunet et al, Nature, julho de 2002) e carinhosamente de “Toumaï”, esse crânio tão antigo - mais de 6 milhões de anos - tem causado furor merecido onde quer que se apresente.

A matéria de página inteira no semanário Pampulha, de 20 a 26/07/02, “Crânio abala teoria da evolução”, oferece ao público não uma, mas duas descobertas fantásticas. Há o crânio em si, que torna a linhagem humana cerca de 1 milhão de anos mais antiga do que previam os estudos moleculares (nossa semelhança genética com os chimpanzés sugere que devemos ter nos separado há pouco tempo na história evolutiva - a idade de Toumaï ultrapassa a estimativa atual, de cerca de 5 milhões de anos). A segunda novidade é a que apresenta um único crânio “abalando” a teoria da evolução, destaque concedido em quase toda a imprensa mundial. O que há de tão inconformista em Toumaï que sozinho consegue ameaçar um edifício teórico inteiro? Ele sugere que, afinal, não houve evolução? Que as espécies foram criadas em separado? Ou que nós evoluímos, obrigado, mas os obtusos macacos nada têm a ver com isso?

Não proponho discutir aqui o papel da imprensa na divulgação científica. Estaríamos perdidos se a imprensa não cumprisse sua missão de divulgar. Vejo antes essa notícia como uma expressão de nossa cultura moderna, que volta e meia reafirma: a) a autoridade do cientista como “explicador” oficial do mundo; b) a natureza privilegiada do “fato” na explicação científica; c) a consideração da evolução como “teoria”; e d) a confusão entre evolução e evolução humana. Uma contribuição do historiador da ciência Thomas Kuhn em A estrutura das revoluções científicas (1962) foi retirar os cientistas de um limbo ideal calcado na objetividade e na acumulação do conhecimento, e inseri-los na perspectiva bem mais interessante da conformidade com as questões de seu próprio tempo e de sua própria cultura. Suas teorias não marcham do conhecimento imperfeito para um contato cada vez maior com a realidade: seguem aos tropeços, de acordo com as preferências do momento e do contexto da própria comunidade científica.

Nesse quadro, não faz sentido ver o “fato científico” como uma peça perdida do quebra-cabeças da realidade, esperando ser descoberta pela investigação mais acurada. Os fatos são tão dependentes das teorias (dos sistemas que criamos para explicar o mundo, que têm motivações culturais) quanto as teorias são dos fatos. O sol é um exemplo: o “fato” dele girar em volta da terra era plenamente aceito por cientistas honestos no século XVI, seriamente compromissados com a boa investigação. O “novo sol” de Copérnico não tem paternidade única no avanço tecnológico, mas surge com a postulação de um modelo cosmológico diferente. Toumaï tem uma grande importância, revolucionária até, na reescritura de nossa história genealógica. Mas para entender porque sua descoberta colocaria “em xeque” todo um quadro teórico consensual, precisamos perguntar o que entendemos por evolução.

O que é “teoria da evolução”? Se traduzirmos evolução, como fez Charles Darwin em 1859, por descendência com modificação, esse é o processo de diversificação dos organismos ao longo do tempo. Isso é uma teoria? Há hoje uma “teoria heliocêntrica”? (ou seja, vale à pena considerar o sistema oposto, do sol girando em volta da terra?). Assim como a orbitação terrestre, a evolução é um fenômeno, aceito pela comunidade científica como tal, e portanto não é uma teoria, mas o “fato” que deve ser explicado. Darwin explicou a evolução sobretudo através de sua teoria da seleção natural. Hoje há outras explicações paralelas ou complementares a essa (não necessariamente opostas ao darwinismo original). Toumaï só pode refutar a (teoria da) evolução se colocar em dúvida a própria existência do fenômeno que queremos explicar.

Minha última sugestão para a origem desses problemas é a confusão entre evolução e evolução humana. Aí está um velho preconceito nosso, que pinta a evolução como progresso, nos dando a esperança de que os organismos evoluíram desde as formas mais simples, passando por seres intermediários e culminando na perfeição da máquina humana. É uma bela história, mas enganosa sob qualquer ponto de vista, pois todos os organismos que existem hoje são igualmente evoluídos, enredados numa teia de descendência que liga filósofos, mexilhões e bactérias em uma mesma história de cerca de 4 bilhões de anos. Ainda, toda organismo de toda linhagem é um ser plenamente integrado e “adaptado”, e não um “elo” entre uma espécie e outra. Toumaï muda as narrativas sobre a nossa história, complicando o emaranhado de galhos de nossa genealogia, mas é isso mesmo que devemos esperar da evolução: diversidade - e não uma escada ascendente indo linearmente do macaco ao humano.

Mesmo que a descoberta de Toumaï mude as explicações atuais para o fenômeno específico da evolução humana, ela nem de longe arranha o fenômeno mais geral da evolução. Se o crânio for de nossa linhagem, torna-a mais antiga do que hoje acreditávamos ser. Se não for, ou temos aí um ancestral comum com os chimpanzés ou um “primo”, com história e dignidade próprias. Em nenhum dos casos muda o fato científico (ou seja, o consenso da comunidade científica), de que os atuais humanos e atuais chimpanzés têm um ancestral comum mais recente do que, digamos, o humano e o repolho. Pessoas de algumas religiões têm todo o direito de discordar disso. Os cientistas e seus divulgadores, por definição, não deveriam.

Considerar um macaco atual menos evoluído ou ancestral do humano é uma visão pobre da evolução, que nos leva a procurar elos perdidos e a cercar o assunto de mistério e assombro quando falhamos em encontrá-los. Toumaï merece um lugar melhor na história do nosso mundo.